Hoje acordei cedo. Como de
costume, o dia 24 deixa-me ansiosa, sonho muito e não consigo dormir bem.
Todas as manhãs, há já quase um
mês, a primeira coisa que faço quando acordo é sentar-me junto à árvore de
Natal e ficar a olhar para ela durante uns minutos. Estou mesmo satisfeita com
a nossa obra: a estrutura é feita de rolos de papel higiénico e folhas de
jornal; a decoração com restos de lã a fazerem de fitas e restos de tecidos que
recheámos para fazer de bolas; e espalhámos uns bocadinhos de papel de alumínio
para ela brilhar como se tivesse luzes.
Tomo o pequeno-almoço e visto-me,
antes mesmo de os meus pais saírem da cama.
“Estás ansiosa com a noite de
hoje?”, perguntam.
Respondo, embaraçada, que sim. Mas
não é só pelo abrir dos presentes (que gosto muito, claro!). É, principalmente,
porque só vejo alguns dos meus familiares uma vez por ano, nestes dias de
Natal.
E se o avô Zé, o avô do meu pai,
puder passar a noite connosco, vai contar-nos histórias até ser meia-noite, nem
vamos dar pelo tempo passar.
O dia decorre lentamente. Já tenho
tudo pronto para ir para casa da Tia Cristina, onde vamos todos jantar, porque
ela tem uma sala gigante. Até já embrulhei os presentes que preparei para os
meus primos. Este ano fiz bombons caseiros, tenho a certeza que aqueles gulosos
vão adorar.
Chegámos cedo para o jantar, ainda
mal passou a hora do lanche, mas os meus pais já não conseguiam manter-me em
casa. Assim posso ajudar a acabar as decorações, a amassar as filhoses e fritar
rabanadas, e a pôr a mesa. O tempo assim passa sem eu dar por isso e os meus
primos já estão prestes a chegar. E o
avô Zé também.
O jantar é bacalhau com batatas.
Ieeccckkk!!!! Sempre a mesma coisa! Porque é que no Natal temos de comer sempre
bacalhau cozido?!...
“É uma tradição antiga.”, explica
o Tio Carlos, que é professor de História. “Na Idade Média os cristãos deviam
respeitar o jejum nos dias festivos, portanto, em vez de comerem carne, comiam
peixe. E o bacalhau era um peixe barato nessa altura.”
“Mas nós já não estamos na Idade
Média.”, rebate o meu primo Filipe.
“O bacalhau foi muito importante
para a economia portuguesa.”, continua o Tio Carlos. “E para as outras
economias também porque sempre que não conseguíamos pescar bacalhau suficiente
acabávamos por importá-lo.”
O avô Zé, calado até ao momento,
inicia uma das suas histórias: “Quando era muito novo, ainda nem os dezasseis
anos tinha, embarquei como pescador num desses lugares, os navios bacalhoeiros
que partiam para a Terra Nova. A minha família era muito pobre e os armadores
pagavam adiantado à família, por isso eu não tinha escolha.”
Não me atrevi a contestar mais,
queria ouvir a história do avô Zé.
“A faina do bacalhau era muito
mais dura do que eu tinha imaginado. Acordavam-nos muito cedo, ainda nem o Sol
se via, e lançavam os dóris ao mar, uns barquinhos de madeira pequenos e
frágeis onde só cabia um homem. Os pescadores andavam mais de dez horas longe
do lugar , pescando à linha ou com uma lança, a zagaia. Houve muitos pescadores que
nunca voltaram, ou se afundavam, ou se perdiam, ou morriam de fome e sede antes
de serem recolhidos no navio.”
Estávamos completamente presos a
esta história.
“Quando chegávamos com o peixe
seguiam-se horas sem fim a arranjá-lo. Cortar a cabeça para fazer farinhas,
retirar o fígado por causa do óleo, limpar do peixe o resto das tripas, abri-lo
ao meio e pô-lo a salgar no porão.”
Com um ar algo enjoado, a minha
prima Teresa mal tinha tocado na comida. “Eu também não quero comer bacalhau.”,
diz, deixando a família espantada. “Vocês sabem que a pesca intensiva do
bacalhau, em grande parte culpa dos portugueses, está a levar esta espécie no
caminho da extinção?”
Ninguém pareceu dar-lhe grande
importância. Desde que entrara na universidade que os seus comportamentos e
conversas se tinham alterado um pouco.
“O tipo de pesca que o avô fazia
era dura mas agora os meios são outros.”, continua. “Os pescadores usam redes
de arrasto, destruindo os fundos marinhos ao longo de quilómetros, pescando
tudo o que apareça no caminho.”
“Por acaso, vi na televisão que
estas redes de arrasto apanhavam animais que não tinham interesse para venda e
os devolviam ao mar já mortos, incluindo muitos animais que nem eram adultos
ainda.”, apoia o meu primo Henrique.
Teresa insiste: “Se os animais não
chegarem à idade adulta não se reproduzem e não repõe o número de animais
pescado. Pescamos a um ritmo maior do que o ritmo a que se reproduzem, mesmo o
bacalhau que produz mais ovos do que qualquer outro peixe. Um dia chegamos ao
mar e não conseguimos apanhar nada.”
Entusiasmado com a conversa, o
Filipe introduz um novo facto: “Outro dia vi que uma rede de arrasto podia
apanhar 500 toneladas de peixe. A abertura da rede é tão grande quanto quatro
campos de futebol juntos.”
“Oh, menina Teresa! Com essas
coisas que aprendes lá nas biologias queres impedir um pobre velho como eu de
comer o seu bacalhau na consoada?”
“Não avô.”, defende-se a Teresa.
“Quero alertar-vos, a todos, que se continuamos assim deixamos de ter bacalhau
na consoada, ou então começamos a comer gato por lebre, vendem-nos outros
peixes salgados como se fossem bacalhau.”
“Fazem ideia que somos o terceiro
maior consumidor de peixe do Mundo? E que isso nos obriga a importar muito mais
do que exportamos?”, acrescenta o Henrique.
Era a minha vez de intervir. “Eu
acho que devíamos comer peixes da nossa costa porque poupamos nos transportes e
porque assim damos trabalho aos nossos pescadores. Devemos apoiar a pesca
tradicional, não é?”
Corei com todos os olhos presos em
mim.
“Também podemos reduzir o consumo
de peixe, e até de carne, e aumentar o consumo de vegetais.”
Gargalhada geral. Logo o Filipe
com um conselho destes!!!
“Estou a falar a sério! No próximo
ano vão ver...”
Teresa acrescenta: “Existem várias
organizações preocupadas com a sustentabilidade da pesca e ao mesmo tempo com o
bem-estar das populações humanas. Tudo o que precisamos é fazer as escolhas
corretas, decidir que peixe comer, de forma a ter o menor impacto ambiental possível. E vamos
com certeza conseguir poupar dinheiro com medidas mais ecológicas.”
“No próximo ano faço menos
bacalhau e acrescento um guisado de polvo.”, pensa com os seus botões a tia
Cristina.
Entre risos e conversas o bacalhau
arrefece no prato. Amanhã servirá na roupa velha, mas hoje passamos diretamente
aos doces.